Cientistas registram primeiro caso de remissão do HIV sem edição genética

Estudo inédito mostra remissão duradoura do HIV após transplante de células-tronco sem mutação genética, marcando novo avanço da biotecnologia.

BIOTECNOLOGIA

Albio Ramos

11/2/2025

Researcher looking through a microscope.
Researcher looking through a microscope.

Introdução

A erradicação do vírus da imunodeficiência humana (HIV) ainda é um dos maiores desafios da biotecnologia moderna. Desde a descoberta dos antirretrovirais, milhões de pessoas vivem com o vírus de forma controlada, mas o tratamento não representa uma cura: basta a interrupção da terapia para que o HIV volte a se multiplicar. Isso acontece porque o vírus permanece “escondido” dentro de células de longa duração, formando o chamado reservatório viral latente.

Em dezembro de 2024, uma equipe internacional de pesquisadores publicou na revista Nature Medicine um estudo que representa um avanço sem precedentes. O trabalho, intitulado “Sustained HIV remission after allogeneic hematopoietic stem cell transplantation with wild-type CCR5 donor cells”, descreve o caso de um homem de 53 anos que vive há mais de trinta anos com HIV e que entrou em remissão completa do vírus, mesmo após ter interrompido o tratamento antirretroviral por mais de dois anos.

O aspecto mais surpreendente é que, ao contrário dos casos anteriores de remissão, o paciente recebeu um transplante de medula óssea de um doador sem a mutação CCR5Δ32, conhecida por bloquear a entrada do HIV nas células. Isso demonstra que a remissão pode ocorrer sem necessidade de edição genética ou de células naturalmente resistentes ao vírus.

O estudo foi conduzido por um consórcio científico europeu liderado pelo Institut Pasteur (França), com colaboração da Universidade de Düsseldorf (Alemanha), do IciStem Consortium sediado na Universidade de Utrecht (Países Baixos), do IrsiCaixa e Hospital Clinic de Barcelona (Espanha) e da Université Paris Cité (França). Juntas, essas instituições vêm investigando há mais de uma década o impacto do transplante de células-tronco hematopoéticas em pessoas vivendo com HIV.

Como o estudo foi conduzido

O paciente, identificado apenas como um homem de 53 anos, foi diagnosticado com HIV em 1990. Durante décadas, manteve o vírus controlado com terapia antirretroviral (TARV). Em 2018, ele foi diagnosticado com um sarcoma mieloide, um tipo raro de câncer hematológico que afeta a medula óssea.

Como parte do tratamento oncológico, os médicos indicaram o transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas (allo-HSCT) — um procedimento em que as células da medula óssea do paciente são substituídas pelas de um doador compatível. O doador selecionado era compatível em 9 dos 10 marcadores HLA necessários, porém não possuía a mutação genética CCR5Δ32, o que, teoricamente, o tornava suscetível ao HIV.

O transplante foi bem-sucedido para o tratamento do câncer, e o paciente entrou em remissão oncológica. Após o procedimento, ele apresentou doença do enxerto contra o hospedeiro (GvHD), uma complicação comum em que as células do doador atacam tecidos do receptor. Essa reação afetou principalmente o fígado e a pele, sendo controlada com imunossupressores e corticoides.

Durante o processo de recuperação, ele recebeu também ruxolitinibe, um medicamento imunomodulador usado para controlar a GvHD. O uso prolongado dessa substância pode ter tido um papel indireto na redução do reservatório viral, uma vez que pesquisas anteriores sugerem que o ruxolitinibe inibe a reativação de células infectadas de forma latente pelo HIV.

Interrupção do tratamento e observação clínica

Cerca de 40 meses após o transplante, em novembro de 2021, a equipe médica decidiu interromper de forma controlada a terapia antirretroviral. O objetivo era observar se o vírus retornaria à circulação sanguínea, como ocorre na maioria dos casos.

O paciente foi monitorado de perto por uma equipe multidisciplinar, com análises mensais da carga viral e do DNA proviral. Durante 32 meses de acompanhamento sem uso de antirretrovirais, todos os testes — incluindo os de alta sensibilidade — continuaram negativos para RNA e DNA do HIV.

Além disso, exames moleculares não detectaram vírus viável em células de sangue periférico nem em amostras de medula óssea. Fragmentos esporádicos de DNA viral detectados eram incompletos ou apresentavam mutações que impediam a replicação, o que indica a eliminação funcional do reservatório viral ativo.

O paciente permanece clinicamente bem, com sistema imunológico estável e sem sinais de infecção pelo HIV até o momento da última análise relatada no artigo.

Por que o caso é inédito

Antes desse estudo, os únicos casos conhecidos de remissão duradoura do HIV envolviam transplantes de doadores com a mutação CCR5Δ32/Δ32, que impede a expressão do receptor CCR5 — uma das “portas de entrada” do vírus nas células T CD4+. Essa mutação é extremamente rara, presente em cerca de 1% da população europeia.

Nos casos conhecidos — como o “paciente de Berlim”, o “paciente de Londres” e o “paciente de Düsseldorf” — a ausência do CCR5 foi considerada essencial para o sucesso. Contudo, o novo caso descrito na Nature Medicine prova que o HIV pode ser controlado mesmo sem essa mutação, o que amplia as possibilidades terapêuticas.

Isso indica que outros mecanismos biológicos e imunológicos podem levar à remissão, especialmente os relacionados à substituição completa do sistema hematopoiético e à resposta imune pós-transplante.

Mecanismos propostos pelos cientistas

Os pesquisadores apontam que a remissão observada é resultado da combinação de diversos fatores, e não de um único evento isolado:

  1. Substituição completa do sistema imune — O transplante substitui as células-tronco hematopoéticas do paciente por células do doador, eliminando grande parte das células infectadas que abrigavam o vírus.

  2. Efeito enxerto-versus-reservatório — As novas células do doador podem ter reconhecido e destruído as células do paciente que continham o HIV latente, de forma semelhante ao efeito enxerto-versus-leucemia observado em tratamentos oncológicos.

  3. Atividade imunológica da GvHD — A reação imunológica intensa que ocorreu após o transplante pode ter ajudado a eliminar células residuais infectadas.

  4. Ação do ruxolitinibe — O uso contínuo do medicamento pode ter reduzido a reativação viral e limitado o potencial de replicação das células infectadas.

  5. Atividade aumentada de células NK (natural killer) — O estudo identificou um perfil diferenciado dessas células, conhecidas por destruir células infectadas e contribuir para o controle imunológico.

Esses fatores, em conjunto, parecem ter criado um ambiente imunológico capaz de extinguir quase completamente o reservatório do HIV sem necessidade de intervenção genética.

Comparação com outros casos de remissão

O caso relatado na Nature Medicine é o primeiro em que a remissão prolongada do HIV ocorreu sem mutação genética associada à resistência viral. Nos casos anteriores, todos os doadores possuíam a deleção CCR5Δ32, que impedia a infecção das novas células pelo vírus.

A diferença é significativa: no presente caso, as células do doador possuíam o receptor CCR5 funcional, o que significa que continuavam biologicamente suscetíveis ao HIV. Ainda assim, o vírus não voltou a se multiplicar. Isso reforça a hipótese de que o sucesso não depende apenas de impedir a entrada do vírus, mas também de eliminar seu reservatório.

O que a ciência diz sobre a remissão

O artigo enfatiza que o termo “remissão” deve ser usado com cautela. Diferente da cura, a remissão indica ausência de vírus detectável por tempo prolongado, mas admite a possibilidade de que quantidades mínimas ainda existam.

Os autores destacam que o caso representa um marco científico, mas não um tratamento replicável. O transplante de medula óssea é um procedimento complexo e arriscado, indicado apenas em casos de doenças hematológicas graves, e não é viável como terapia para o HIV em pessoas saudáveis.

Ainda assim, o estudo abre caminho para novas estratégias de pesquisa, especialmente voltadas à indução de mecanismos semelhantes por meio de terapias imunológicas e biotecnológicas menos invasivas.

Implicações para a biotecnologia

O avanço relatado representa uma mudança conceitual importante para a biotecnologia médica. Se a remissão é possível sem necessidade de mutações genéticas, isso indica que os cientistas podem replicar artificialmente os mesmos mecanismos biológicos através de imunomodulação ou terapia celular.

As futuras linhas de pesquisa podem incluir:

  • Uso de células NK modificadas para eliminar reservatórios virais.

  • Terapias baseadas em imunomoduladores seletivos, como o ruxolitinibe.

  • Desenvolvimento de estratégias de reconstituição imunológica controlada após terapias intensivas.

  • Criação de protocolos que imitem o efeito enxerto-versus-reservatório sem necessidade de transplante completo.

Essas possibilidades aproximam a biotecnologia da meta de controlar ou erradicar o HIV de forma segura e acessível, reduzindo a dependência de tratamentos de alto risco.

Perguntas Frequentes (FAQ)

1. Esse caso significa que o HIV foi curado?
Não. O termo usado é “remissão”, pois ainda não se pode afirmar que o vírus foi completamente eliminado. O paciente está sem sinais de infecção há mais de 32 meses, mas o acompanhamento continua.

2. O transplante de medula pode ser usado para tratar o HIV?
Não é indicado como tratamento para o HIV. O transplante é reservado a doenças hematológicas graves. O caso serve apenas como modelo científico para futuras pesquisas.

3. Por que o paciente não teve recaída mesmo sem a mutação CCR5Δ32?
Acredita-se que a combinação do novo sistema imunológico, da resposta do enxerto e do uso de imunomoduladores tenha eliminado o reservatório viral de forma eficaz.

4. O que esse estudo representa para a ciência?
Mostra que é possível alcançar remissão do HIV sem edição genética, ampliando as possibilidades de pesquisa em biotecnologia e imunoterapia.

Conclusão

O estudo publicado na Nature Medicine em 2024 marca um dos avanços mais importantes da história da pesquisa em HIV. A remissão sustentada observada após transplante de medula sem mutação CCR5Δ32 redefine os caminhos da biotecnologia e reforça o papel do sistema imunológico como aliado natural no combate ao vírus.

Embora o caso ainda seja único e precise de mais tempo de observação, ele oferece uma nova perspectiva: a possibilidade de alcançar remissão do HIV sem depender de modificações genéticas, abrindo espaço para terapias menos invasivas e potencialmente aplicáveis a um número maior de pessoas.

O estudo representa um marco para a ciência moderna — um lembrete de que, mesmo em desafios que pareciam impossíveis, a pesquisa continua abrindo caminhos reais para o futuro da medicina e da biotecnologia.

Referência

Sáez-Cirión, A. et al. (2024). Sustained HIV remission after allogeneic hematopoietic stem cell transplantation with wild-type CCR5 donor cells. Nature Medicine, 30(12), 3544–3554. https://doi.org/10.1038/s41591-024-03277-z

✍️ Escrito e revisão por Albio Ramos (pseudônimo) — Médica veterinária, pesquisadora e divulgadora entusiasta de biotecnologia.
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